29.10.05

Um poço sem fundo, e quatro pequenos ecos que saem de dentro dele.

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Por diversas vezes me pego com saudade daquela varanda de piso mesclado, com azul e um branco já meio amarelado, que agora já nem é mais o mesmo piso mesclado e eu mal sei que cor tem. Aquela varanda sempre empoeirada, porque casa localizada numa curva sofre mais as sujeiras vindas da rua.
Saudade daquelas cadeiras de balanço feitas de macarrão colorido... Quando criança, eu sempre achei engraçado a mamãe dizer que as cadeiras estavam quebrando e que os macarrões precisavam ser trocados. Eu ia muito além com tudo isso, e ainda era capaz de pensar aqueles macarrões de plásticos, cozidos cobertos de molho pomarola e queijo parmesão.
Que gosto teriam?
Sim eu pensava, pensava e calava.

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Lá, o vento sempre foi ausente, e quando decidia aparecer era de uma quentura de fazer estagnar qualquer pessoa. A casa de esquina, quando o ônibus passava era uma glória, trazia um vento que por mais empoeirado que fosse era bom.
Um calor que na minha miudez passada eu até que suportava, mas hoje agoniza meu cérebro, deixa o juízo torto, faz-me querer chorar pensando que a lágrima talvez alivie o calor que às vezes parece estar só em mim. Mas lembro também, que era de uma alegria sem tamanho acordar com o inverno entrando por debaixo da porta, assim, azul clarinho, cinza clarinho, branco...
Gosto de dar cores às estações.
Logo me vinha o pavor do banho gelado; mas era sempre uma felicidade ao chegar na mesa da cozinha e tomar o café da manhã com um chocolate bem quente feito por ela, uma batida de ovo, um pãozinho assado na boca do fogão; o cuscuz comprado pelo moço que passava gritando: pão de miiilhoooo, pão de milho já chegou tu já se acordou?
Depois que saí daquela cidade passei a sentir falta de chamar cuscuz de pão de milho.
Nostalgias que me consomem.
Mas era bom ir à escola toda empacotada no moletom. Sempre achei as roupas de inverno mais estilosas, e mesmo criança, era a época em que eu me achava mais bonita naquela ruma de pano, nas luvas coloridas que a mamãe comprava para nós; sinto falta até do lábio melecado de batom de cacau, para que não ressequem e criem rachaduras que ardem. Naquela época, eu já achava o inverno mais romântico; mais poético.
É quando todo mundo se abraça procurando um buraquinho mais quente.
E sempre tem alguém por perto pra dar.
Pelo menos nunca me faltou, não lá...

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As mangueiras enormes.
Ela colecionava pés de mangueira; uma na frente da casa, que era pra dar sombra aos carros dos irmãos que estacionavam na calçada; outra na área onde sempre são feitas todas as festas, onde todos os sorrisos são grátis, onde os churrascos são melhores do que de qualquer gaúcho, onde a mesa tem três metros para poder caber os cotovelos de todos os cavalcantis. A outra mangueira fica no terreno baldio encostadinho ao nosso quintal, terreno que também é nosso, que hoje serve para o vovô brincar de plantar coqueiros e a vovó paparicar a horta que ela mesma montou. É nesse terreno que vai morar o irmão caçula dela, meu tio caçula, claro; é lá que a Sofia vai correr com os seus três mil e quinhentos cachorros. Sofia tem cara de que vai ser veterinária, mas isso é só um palpite meu.
Voltando às mangueiras...
É uma saudade de subir no pé feito macaco; de pegar uma manga ainda de vez e comer com sal, porque eu ainda prefiro as mangas meio verdes.
Saudade daquele tempo em que a moça que trabalha lá em casa subia no pé e pedia que eu e meu irmão ficássemos embaixo, com um lençol aberto esperando que ela sacudisse a mangueira e caísse todas as mangas do mundo só pra mim, só pra ele, só pra nós.
Saudade de me lambuzar na frente dos meus tios também lambuzados, de ver aquele suco da manga escorrendo nos cotovelos do meu avó enquanto ele a saboreia.
De ver minha mãe brigando dizendo que a manga que eu como está verde por demais.
Da minha irmã separando um balde de manga só pra ela; com toda uma posse como se coubesse tudo aquilo em uma só pessoa.
E pensar hoje que muitas vezes eu quis vender mangas naquele tempo, mas mamãe fazia diferente; sempre me dava uns trocados pra eu fazer uma atividade laboriosa, que eu só fazia porque assim eu podia comprar bombons na banca do vigia com o meu próprio dinheiro, então eu tinha que recolher o lamaçal que ficava depois que a época de manga se acabava, e toda aquela coisa bonita virava um mar de frutas estragadas bem debaixo do nosso nariz. Porque apesar de tudo, toda a família não dava conta de comer aquelas mangas que sempre chegavam feito chuva.
Mas da coleção de mangueiras dela, a gente sempre ganhou dias bem doces.

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Saudade dos domingos de missa.
Do tempo de catequese... Meu professor chamava Paulo, era bem negro e do olho grande que mais parecia duas bolas de gude, das maiores possíveis; ele era alto, barrigudinho, tinha a voz mansa e uma paciência de contar estrelas.
As aulas eram aos sábados pela tarde, às três se não me engano.
Lembro que nossos amigos que moravam no final da rua vinham em escala crescente de casa por casa; tinha o Quelyson que chamava a Silvinha, que chamava o Victor, que chamava o Estanley, que chamava eu, que chamava meu irmão. Íamos todos juntos, com o caderninho debaixo do braço, conversando, rindo e pensando na tarefa bíblica que tínhamos deixado de fazer porque sábado é sábado.
A gente tinha aula numa capelinha de madeira pintada de azul claro que ficava dentro da Igreja Santa Inês, eu sempre gostei muito dessa igreja, a do bairro, nas missas de lá a gente via todas as caras conhecidas, as pessoas faceiras, mentirosas, danadas, boas ou ruins, todas aos domingos rezando, clamando, "perdoando-se".
Na igreja tinha muitas flores, principalmente papoulas, tinha também um pé de jambo que me dava água na boca, sempre fui louca por jambo; mas pegar os jambos da igreja me fazia pensar em roubo, porque eu sempre achei que tudo da igreja pertencia aos padres, e que eles passavam necessidade de dinheiro, e na minha cabeça, o jambo poderia ser um alimento para eles.
Coisas dos meus pensamentos exacerbados que eu já cultivava desde então.
O professor Paulo nos ensinou a ir à missa todos os domingos, dizia que era fundamental para estarmos de bem com a vida, para começarmos a semana bem, que na missa a gente podia conversar com Deus num cantinho que é todo dele. Lembro que eu acordava cedinho, vestia a roupa que eu tinha separado na noite anterior, não tomava café pra não perder sequer um minuto, e adorava sair de casa quando pela manhã o tempo ainda era frio; quando as pessoas mais velhas ainda estavam fazendo a caminhada que começaram naquela madrugada; gostava de ver a neblina dando espaço para o sol chegar; os padeiros pedalando nas ruas meio desertas sem medo de gritar "olha o pão" logo cedo; as beatas com seus conjuntos de saia e blazer de cores sempre claras, carregavam o terço na mão e talvez poucos pecados na cabeça, ou não... Eu gostava de ver tudo isso até chegar a Igreja Santa Inês. E a missa era sempre boa, o padre que agora esqueci o nome era de uma simpatia inexplicável. Os domingos eram mais claros, mais longos, embora mais divertidos dos que os domingos de hoje em dia.
Talvez porque naquela época, por mais que eu tivesse aulas de catequese, eu não compreendia muito bem essa coisa de crença, de religião, de solidão, de saudade, medo, angústia e todo sentimento que hoje entendo perfeitamente; eu tinha pecado de criança, que era de "pegar escondido" as cajaranas no clube do Vasco, de "pegar escondido" as macaxeiras na mercearia do seu Silvio, e esperar a noite chegar para poder assá-las numa fogueira feita na frente da minha casa e comê-las com sal, enquanto meu irmão e meus amigos contavam estórias de assombração; de xingar minha irmã bem baixinho sem que ela ouvisse, de ficar abusada porque minha mãe não me deixava faltar aula... de... de...
Eu tinha uma felicidade de não caber aqui.
Nem dentro de mim; hoje ela é de um colorido imenso, outras vezes ela é opaca...
Porque o tempo me rouba um pouquinho, a cada dia, e a distância é quem guarda numa caixinha que diversas vezes parece sem cor. Porque o tal do tempo é como borracha.

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e mais uma vez, saudade é um negocinho assim.