6.9.07

Quando o amor tem a cor cinza

Acordei ansioso naquele dia, porque não era um dia comum, como aqueles de rotina cansativa que eu costumo ter e que sei exatamente o que vai acontecer de hora em hora. Na verdade era sábado, mas não era um sábado qualquer, por sinal tava um dia lindo lá fora, um cinzameioazulado.
Levantei da cama imediatamente, tomei um banho quente, fazia um pouco de frio na grande São Paulo. Escolhi a blusa verde, a que ela me deu na nossa última ida ao shopping, coloquei um jeans, o tênis e um casaco pra aquecer o corpo. Não esqueci da caixinha. Passei na floricultura do Sr. Paulo que fica numa esquina bonita aqui da Vila Mariana, comprei Lírios da Paz, grandes e de um branco tão límpido que parecia gritar um amontoado de expectativas que nascem da doída vontade de que do nosso relacionamento brotasse um pouco mais de paciência, de uns tempos pra cá a gente andou discutindo por muitas besteirinhas.
Peguei o metrô, fui até a Consolação, toquei a campainha da casa num tremelique absurdo tomando o meu corpo, era o frio e o nervosismo de estamos comemorando nossas Bodas de Papel; quis fazer diferente dessa vez, já que ela sempre reclamava da minha “falta de comemoração”.
Odete abriu a porta resmungando que a Ju ainda estava dormindo.
Perguntei se eu podia acordá-la? E assim que me respondeu de forma positiva, fui logo subindo as escadas sorrindo numa felicidade incontestável.
Lá estava ela, dormindo toda coberta sem sequer uma brecha pro frio.
Dei-lhe um beijo, ela acordou.
Me sorriu, se espreguiçou, disse um bom dia ainda sonolento e sentou na beirinha da cama.
Estiquei o braço entregando-lhe os Lírios.
Me sorriu de novo, dessa vez cabisbaixa, como quem fica envergonhada; nos abraçamos desejando feliz Bodas de Papel, nos beijamos como quem pede mais amor e tolerância para os próximos dias, meses e anos.
Desci para que ela tomasse seu banho sempre muito lento, para que depois a gente pudesse ir até o Parque Ibirapuera, passear, ganhar o dia, andar de bicicleta [promessa que fiz no primeiro mês de namoro e nunca cumpri].
E foi exatamente o que aconteceu, ganhamos o dia, em passeios e comilanças, alugamos duas bicicletas, pedalamos cortando o vento frio, o cheiro de verde, parecíamos felizes, estávamos felizes, eu com meus sorrisos sempre largos, ela com os seus um tanto acanhados. Coisa de frio, o frio às vezes desanima.
Era quase noite quando decidimos voltar para casa, deixei-a na Consolação e lá mesmo ela me deixou. Nessa mesma rapidez em que acabei de dizer.
Me faltou o ar; senti meu sangue paralisar em meu corpo naquele exato momento; como se o vento congelasse tudo em volta, me peguei dentro de um mundo absurdamente vazio, o barulho da minha respiração acelerada ecoava como se não houvesse mais nada em volta, nem cores, nem cheiro, muito menos sentido.
Um choro que pesava toneladas por dentro parecia preso no meu esôfago, em meus olhos, não consegui derramar uma única lágrima.
De repente me vem aquela ânsia de vômito, conseqüente de uma tontura, taquicardia, arrepios e acho que todos os sentimentos ruins que um ser humano pode sentir me tomaram naquele instante.
E ela ali, parada, pálida e cheia de lástimas. Até chorou um bocado, não sei se por pena ou talvez por alívio. Porque alívio quando num é como um sopro gostoso é um choro. Tem gente que chora de alívio.
Eu já sabia que amor não é só uma coisa de dentro, amor é leveza, amor é azul, amor é gesto... ela, ela não podia me dar dos seus poucos gestos que vinham do pouco de dentro.
Pedi com muito esforço um último favor, que me trouxesse um copo d’água que era pra eu ter forças e conseguir voltar pra casa. Foi a única coisa que consegui falar.
Trouxe a água e ainda algumas explicações desnecessárias que eu ouvia e davam a enorme sensação de que ela , sem nenhum pudor, enfiava uma faca bem do lado esquerdo do meu peito, me causando uma leve sensação de torpor.
Fui embora, ainda com a caixinha no bolso guardando um par de alianças que rodei a Paulista inteira para encontrar, porque eu queria anéis que ao colocar em nossos dedos, fossem de uma boniteza tão intensa que gritasse que ali era amor.
Depois daquele dia vivi os piores de minha vida. Sofri como se sofrer fosse a exatidão do viver... e é! E todas as sensações que senti naquela noite se perpetuaram por muito tempo. Meus dias foram se resvalando, resvalando, resvalando; até que depois de um ano, me ergui daquela tortura, do breu de mim, dos gostos ascos e de puro amargor, da dor, das dores.
Era julho, um outro Julho.
Eu passeava pela Liberdade, desde que ela me deixou eu me acostumei com o solipsismo, mesmo que agora sem sofrimento algum.
A praça como sempre cheia de cores, mas naquele dia acontecia a famosa Tanabata Matsuri - o Festival das Estrelas -.
Tinha alguns palcos para apresentações, estava toda decorada com ramos de bambu e enfeites de papéis coloridos que simbolizam as estrelas.
Fiquei passeando por ali, apreciando um pouco da beleza oriental, até que me esbarrei com um descendente de japonês que estava ajudando na decoração; conversamos por algum tempo, o suficiente para ele me dizer que a festa acontece para celebrar uma história de amor, e me explicou passo a passo a história e o ritual.
Comprei um tanzaku, papel onde podemos anotar um pedido, escolhi o de cor verde e nele anotei meu desejo, amarrei num sassadake - ramo de bambu - e esperei ansioso o início do ritual. Onde todos se reúnem e queimam os tanzaku para que a fumaça leve os pedidos até as estrelas.
Esperançoso voltei para casa...
Passaram-se meses e depois desse longo tempo, numa tarde qualquer, me peguei pensando naquele dia, na Praça da Liberdade, naquela festa, naquele ritual...
Olhei meu quarto numa panorâmica, eu ali, sozinho, feliz. Felicidade sutil, epifânica, azul, quase ímpar... sorri, discreto e gostoso...
E compreendi que da fumaça sobram as cinzas e nas cinzas foi o que restou.

Perdido tavez, porque cinza era também a cor daquele amor.

dá o play

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