20.7.07

.Amor desbotado.
Dolores morava numa rua sem nome. E era assim que chamavam quando era necessário fazer qualquer referência, seja para o entregador de pizza ou a moça que vendia verduras numa bacia equilibrada na cabeça - assim, você passa pela Rua São José, depois dobra a esquerda, em seguida você dobra na Rua Tropical e depois dobra numa rua sem nome -. E a rua passou a ser chamada assim, de “Rua Sem Nome”.
A casa de Dolores era uma casa com tonalidade meio amarelada, não sei se de um branco envelhecido ou um amarelo “tipo esquecido”; tinha telhado de barro com manchas de lodo. A porta da frente tinha uns desenhos abstratos, parecia ter sido talhada com um enorme carinho. Havia algumas flores do lado de fora com um certo ar de abandono, um pinheiro estranho ao lado direito da casa e uma gaiola com um passarinho de brinquedo.
Os vizinhos de Dolores disseram que desde que seu marido saiu de casa, ela nunca mais viu o sol nascer que não fosse pelas persianas. Diziam que ela agora era uma mulher sorumbática e desleixada.
Para ela, os dias eram como se fossem um papel dobrado, uma, duas, três... cinco, sete, dez dobras.
Caminhava de um jeito sereno pelos cômodos da casa, mas passava a maior parte do tempo enfurnada dentro do quarto, com os cabelos desgrenhados, dando conta dos seus tiques nervosos; usava uma lavanda que ganhou no dia do seu aniversário - aquelas de dois litros que duram uma eternidade -. Vestia roupas leves e tinha uma feição tristonha.
Dolores escrevia poesias em folha de papel pautado e depois de terminar os versos ritmados, ela amassava o papel e o fazia cinza em labareda.
Os vizinhos diziam que o marido de Dolores era agressivo, tinha um jeito meio ludibriado; mas Dolores amava o jeito ferrenho ou não que ele a tratava.
Até que um certo dia, nas caminhadas serenas dentro de casa, Dolores foi remexer as gavetas, todas cheias de fotografias antigas e bilhetes rabiscados de sentimentos, cartões de Natal, convites de casamentos, um envelope. Rasgado, manchado e com uma carta escrita num papel amarelado.
Era dele. Escrita por ele, para ela.
No tempo em que o amor era uma janela aberta. Quando ele deixava a caneta escorregar no papel de um jeito tão manso, que parecia afago.
No branco, agora amarelado.
Dolores lia, relia e chorava de um jeito compulsivo; não imaginava que um amor digno de talhar porta com desenhos abstratos, se cobriu num rubro sangrado, num todo asco.
Ela chorava, chorava, até que os olhos fecharam e o peito gritou num palpitar cansado, que o amor não é um canto ensaiado, é um pintar do jeito que quer, traçar do jeito que quer. O amor é solúvel, é palpável, é maleável e pode mudar seja com o anteceder do tempo ou com o passar do tempo.
E amor às vezes se transforma, em desamor ou num grande amor desbotado.

Dolores lia, relia e agora suspirava de um jeito quase epifânico. Como quem arrisca sorrir ao pensar em ir lá fora ver o sol nascer.
Observar de um ângulo que não seja o de dentro, a casa da Rua Sem Nome.
E num piscar de olhos, tentar tingi-la de qualquer cor, desde que não lembre um certo amarelado.

dá o play

Nenhum comentário: