31.7.07

A pedidos, republico o conto:
Uma saudade chamada Arlequim

Depois que mamãe faleceu, resolvi vasculhar suas coisas; encontrei fotos lindas e um grande diário. Como se não bastasse ter tomado um susto ao ver que ela escreveu escondida até os seus oitenta e quatro anos, achei junto de toda papelada, esse texto:
Ontem foi o meu aniversário de oitenta anos e todos vieram para minha casa no interior onde nasci; meus filhos, noras, genros, netos e até bisnetos. Reuni toda a família naquele fevereiro.
A cada dia que passa parece que eu ganho mais um par de rugas no rosto, já não enxergo as coisas direito e ando cada vez mais devagar; mas nesse mesmo aniversário ganhei uma bengala e só Deus sabe como foi difícil aceitar aquele pedaço de madeira fino suportando um peso que nem eu mesma agüentava e continuo não agüentando.
Aquele foi um aniversário diferente; a festa foi grande, bonita e mesmo sem o meu consentimento, minha família decidiu comemorar com uma festa carnavalesca, como as que eu freqüentava quando era mais nova. No começo achei uma idéia ruim, mas depois fiquei achando que essa era uma boa oportunidade para os meus netos conhecerem o verdadeiro Carnaval; até porque se eu dissesse que não queria, naturalmente não aceitariam minha opinião. Pois chega uma certa idade em que velhos, como eu, não têm mais opinião.
Até quis ajudar na decoração, na cozinha, mas já não tenho forças pra essas coisas, então fiquei vendo os preparativos sentada em minha cadeira de balanço, onde vez em quando me pegava cochilando mesmo sem querer.
Era um vaivém danado de gente, meus netos corriam para um lado e para o outro, bagunçando tudo que minhas filhas e noras tinham arrumado. Cansada de ficar sentada, resolvi ir dormir em meu quarto, mesmo sabendo que meu marido estaria ouvindo aquele rádio antigo numa altura insuportável; coisa que o tempo faz acostumar.
Dormi por algumas horas e quando acordei já era noite. Tomei um banho, coloquei um vestido de corte reto que meu filho mais velho me deu alegando que quando a gente fica velho, deve usar essas coisas sem curvas que cobrem o corpo inteiro pra parecer decente na missa de domingo. Penteei os cabelos, despejei um pouco de lavanda e mesmo com minha mão trêmula, passei um batom bem clarinho que eu já não usava havia um tempo. Acho até que estava passado, mas naquele dia nada importava, só aquela estranha vontade de colocar uma fantasia de Colombina, umas purpurinas no rosto e um batom avermelhado. Não era um pensamento ou uma vontade imoral, só eu sabia que era um sentimento nostálgico, apenas.
Ao chegar na varanda, me emocionei com um lindo salão de festas, serpentinas penduradas, máscaras feitas de papelão coladas nas paredes e todos eles fantasiados bem ali na minha frente. Me vi entre piratas, bailarinas, palhaços, odaliscas e ciganas.
Naquele momento, perdi o fôlego. Mas aquilo não se tratava de um mal-estar qualquer de gente idosa; havia uma emoção diferente dentro de mim, que eu não sabia ao certo o que era. Me quedei sentada na cadeira de balanço enfeitada com tiras de todas as cores e fiquei observando aquele Carnaval, quase do mesmo jeitinho de quando ainda havia energia em meu corpo e minha pele era uma tez, de quando meus pés pareciam não obedecer ao meu cansaço e todo mundo se divertia naquela grande brincadeira.
Meus filhos colaram fotos grandes do tempo em que eu me escondia atrás das máscaras e tudo era dança. Fotos minha e do meu marido, eu de Colombina e ele de Pierrô. Todo Carnaval nos vestíamos dos mesmos personagens, que era pra não esquecer jamais de que foi no Salão Folia que nos conhecemos, que aceitamos as nossas vontades de sermos namorados e, anos depois, marido e mulher. Essas lembranças eram sempre mais nítidas quando chegava Fevereiro, quando estávamos vestidos eu de Colombina e ele de Pierrô, quando era Carnaval.
E no meu aniversário de oitenta anos, como se já não bastasse a grande festa que de certa forma me proporcionou uma alegria enorme, ele, meu marido, escondido atrás da porta, gritou com aquela voz rouca de velho sem força, pedindo que tocassem a música. Continuei sentada em minha cadeira de balanço, já que a velhice não me permite muito movimento.
E bem alto, nas caixas de som apoiadas ao lado da mesa, começou a tocar:
"Tanto riso, oh quanta alegria
Mais de mil palhaços no salão
O arlequim está chorando pelo amor da colombina
No meio da multidão
Foi bom te ver outra vez
Está fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele pierrot
Que te abraçou
Que te beijou meu amor
A mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade...
Vou beijar-te agora, não me leve a mal
Hoje é carnaval..."
De repente lá vem ele, vestido com a fantasia de Pierrô e também com uma bengala na mão facilitando os passos lentos, os óculos recostados na ponta do nariz e um sorriso que nem mesmo as rugas escondiam. E mesmo assim, com toda aquela homenagem, com todo aquele Carnaval, a minha saudade era outra. Saudade que por tantas vezes fora esquecida ou até mesmo escondida em mim. E apesar de estar perto de toda a família, comemorando um dia que era só meu, sentia que muito embora o tempo me tivesse roubado tão boas lembranças, naquele aniversário, minha saudade tinha um outro nome e vestia um outro costume. Minha saudade circulava o salão por tantos carnavais fantasiado de arlequim.


e pra deixar mais bonito.. dá o play

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